quinta-feira, 12 de março de 2015

Quando Deus fala


Eu caminhava pela calçada, pressa, calor, fumaça de escapamento dos carros, gente por todos os lados, vendedores de comidas, panfleteiros, guardas de trânsito, três moto-taxistas; eu atravessando a rua e dobrando a esquina, seguindo procurando as sombras da parede que duram até perto do meio dia, eu de branco e Deus falou comigo. Sua voz ribombou acima e abaixo dos sons dos passantes, dos vendedores, dos carros, das buzinas, do vento nas árvores e das paredes que faziam a sombra. Sua voz ecoou pelo universo, esteve em todos os tempos, assistiu extinções em massa, genocídios e chegou aos meus ouvidos. Grave, esganiçada – blasfemo, mas me parecia mesmo desafinada - , fala minha língua e eu não entendo nenhuma palavra, mas Deus fala com minha alma e não posso não ouvir, não posso não parar para saber o que deseja de mim. Então eu paro, abaixo a cabeça e giro mais devagar do que seria normal, porque eu penso E se não tiver ninguém aqui? E se estou tendo meu primeiro episódio esquizofrênico? Mas tão certo quanto qualquer coisa pode ser certa, Deus está lá, a voz é d’Ele. Deus me olha com olhos laços, fundos, olhos em que caberiam a Via Láctea e sua vizinha Andrômeda, olhos que prantearam o dilúvio e o fogo em Sodoma, olhos que viram Roma saqueada; esses olhos, sim, dizia, esses olhos me abarcam também e a eles fito. Deus inclina o pescoço e estende a mão num gesto suave, misto de quietude, serenidade e elegância. Imaginem agora a situação a que me encontro em plena Av. Frei Serafim, próximo ao módulo de saúde, a coletiva, onde encontra-se o colosso Hospital Getúlio Vargas – grande injustiçado pela desmemoria do povo a quem por bem ou por mal, serviu de ponte a tantos direitos trabalhistas - , e eis que Deus agora deixa de ser estático, move-se, e move-se com elegância. Inclino para ouvir melhor, tentar distinguir qualquer que seja o maná saindo daquelas palavras que certo tempo ordenaram o nascimento da luz. A contradição, certa vez em minha humilde distração de filosofia concluí, é congênita da lógica. Pois que este mesmo Deus – aqui o pronome demonstrativo serve apenas para ilustrar a quem se refere, posto o costume judaico-cristão conduzir a certas conveniências interpretativas das mais falaciosas, refiro-me pois ao Deus único de cuja existência não tenho dúvidas, este cuja voz é objeto desse relato – permite agora que meu entendimento se alinhe com as palavras proferidas. Deus pede dinheiro pra comprar um almoço.
Dou-lhe cinco reais, o ano é 2015, para fins de correção monetária. Respondo obrigado senhor, ao que Ele responde também obrigado. Abre  o sinal, eu atravesso e repito com certo ar metafísico ou teologia travestida de humildade na glória de tal momento, Amém.


Abimael Oliveira.
Iniciado não lembro quando, concluído em 08/03/2015.

domingo, 11 de janeiro de 2015


As lembranças se movem e uma poeira com a sua forma se desenha no ar. Meus olhos acompanham uma voz invisível sangrar o espaço com seu nome. Você existe aqui e agora. É tangível, um sentimento tão físico quanto qualquer toque pode ser. É aqui que tudo vai doer. É quando cada pedaço de teu corpo fica diante de mim como o meu céu nublado particular.sinto que é pra sempre inútil pensar em te re-ter. Penso isso e tento esquecer o que sei.
Te lembrar é saber da ausência de finitude no que mais importa um desfecho.

Em que braços você prostitui o amor que me jura ter?


Abimael Oliveira
24/12/2014, FSA

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Do que me traz à saudade

Tua mentira sussurrada
diz saber da verdade das andorinhas.
Escorre entre meus olhos a silhueta
de cada instante do por vir.
Beijo teus caules, abraço tua velhice de folha primaveril
Desfolho teus cabelos em cor,
empoleiro tuas mãos nas minhas
Estou à distância de teus voos fingidos.
Floresçamos, é nosso dever com a direção dos sonhos.

Escorre debaixo da porta o sangue de lembranças,
a saudade é um ponto de fuga,
o futuro de borrão na vegetação rasteira da praça de fretes...
E eu voltei.


Abimael Oliveira
30/07/-16/09/2014

sábado, 2 de agosto de 2014

Sobre como ser boêmio

Fotografia: National Geographic

Meu amor sempre andou só. Calado na dele. Sempre que se batia com alguém, pedia desculpas, abaixava a cabeça e atravessava a rua.
Na multidão de pernas meu amor passa ligeiro.
É breve e sublime, a nublagem duma só nuvem.
Anda apressado, aperta o tempo e folga o passo.
Chega onde parte.

O meu amor tem sofrido muito por não saber onde ir.
Taciturno na noite apalpa os egos
comunga as flores das manhãs tardias.
Meu amor, como uma crônica, passa e morre.
Fico a pensar pronde vão as personagens.

Se durasse mais cinco linhas, que fim teriam?




Abimael Oliveira

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Manhã cheia

Pensei ouvir tua voz, sonhei sentir teu cheiro.
Eram brumas, desfaziam quando eu tocava
Deixei onde estavam, à distância,
brancas, leves, ondulando
ao sabor de vento e maré dos meus desassossegos.
Não sei como,
você voltou aos meus pensamentos.
Eu tenho sofrido muito por desconhecer
meus passos.
São pés rotos que fazem meu caminho,
pegadas quentes,  que estou sempre reacendendo.
Colho dos sentidos uma melancolia arrastada,
que se vai impregnando cada roupa que visto,
cada lugar onde sento,
e então tudo me cansa e deprime.

Saber da vida é cansar-se e deprimir-se.


Abimael Oliveira

sábado, 10 de maio de 2014

Ensaio em aquarela

Aquarela: Bárbara Barros Lemos
A primavera bagunçava seus cabelos,
o verão ondulava sua saia.
Era outono em seus seios
e chovia o inverno em seus olhos.
Ela trazia o tempo apertado contra o corpo,
carregava consigo o por vir de vidas inteiras.
Meu pensamento amanheceu em seu sorriso,
entardeceu no limite da realidade e tua pele
fluía com o peso do coração vibrante
de um mundo jovem, com mil amores a criar.



Autor: Abimael Oliveira.

terça-feira, 11 de março de 2014

20:45

Houve um grito, um espasmo no horizonte,
e a quimera daquele dia deu seu suspiro.
Era um sonho natimorto, mas em tudo,
cada tonalidade, parecia vivo, a ponto
de rebentar meus olhos e juntar seu grito
ao grito dentro de mim.
Eu vi quando seus dentes rangeram,
chorei quando o gozo murchou.
Assisti a tempestade deitar-se
no semblante das memórias.

Permaneço. É da minha natureza,
e isso a quimera tem de mim.
Minha permanência de platéia sem aplauso.



Abimael Oliveira